Em Janeiro de 2009 estive na Trama, em Lisboa, para apresentar o poeta espanhol Francis Vaz e a sua "Antología de Drink River". Publico na íntegra os poemas que traduzi para aquela noite tão especial.
Procuro um assassino mas ninguém se move
Seguro a garrafa de álcool barato
E nada
Será que me destroem a ilusão
Com impulsos de boa fé
Assim ela respira e não parte o seu porquinho de moedas
O seu bar parece um jardim zoológico com animais
de várias espécies
Escumalha essa palavra que nos iguala
Escumalha de olhos tristes que clamam
O galope de um cavalo nas veias
A emoção daquele que entrega o seu sangue
Um corte tão solitário um corte de amor
Esquecido ao acaso por baixo dessa terra
Que sem reparar nós pisamos
Esquecemo-nos do amor
como a morte se esqueceu de mim
a partir do interior
atrás dos vidros
observo a cinza que nos entregam como se fosse céu
e os tímpanos gelados das cornijas
e a sua aparência que é de perigo
de dureza seca
Quanta frieza acumulada!
Por que não postergar a sua gélida máscara
Por que não desejar fazê-la jazer debaixo da terra
Pisoteada pela escumalha de olhos tristes
Que impotentes
Nem chorar eles conseguem.
Gemo de raiva pelo seu cruel desdém
E porque sei que chegará ainda que tardio
E me achará sozinho terrivelmente sozinho
Com os olhos cristalizados na noite
Como dois glaciares milenários
Que com a luz de um afecto sincero
Talvez pudessem no entanto descongelar.
*
O comerciante vem pelo seu pedaço de carne
Negociada no seu banco com o construtor
deixa a carteira sobre o balcão
e aperta o nó da sua gravata
a cada olhar meloso da santa rapariga
Paca, o travesti põe-no nervosíssimo
imagina esses pénis erecto entre rendas e se relambe
Mas o desejo de negócio é mais frutífero
e por aqui não parece rondar gente de bem
e também receia os chibos e os seus boatos
por isso a sua mão é graciosa quase de mago
e debita parábolas sobre o balcão enquanto paga
até segurar o pequeno saco que a miúda
envolve em cupões não premiados
depois fará contas e mais contas
enquanto o construtor ainda o olha com olhos de chibo.
Esta noite não haverá conversa banal
Com a senhora que dorme a seu lado
E o comprimido para dormir não fará o seu efeito.
*
Vem dando a mão e distribuindo panfletos
fala-nos de direitos sociais
de honestidade e limpeza moral
o seu sorriso pepsodent brilha e cega
tem carisma e muitos o desejam
outros o injuriam e apelidam-no de Satanás
mas ele pode com todos
e a todos promete
um passaporte para o paraíso se nele votarem
a grande vida!
Ele é um grande exemplo disso
De viver nesse bairro e no palacete com piscina
A sua visita é breve
E depressa pisa com firmeza o asfalto
subindo ao mercedes
Depois saca um lenço e
Conscienciosamente
Limpa as suas mãos
De toda a sociedade.
*
O travesti de tetas caramelizadas da televisão
Diz que ela não é moderna é futurista
E as suas palavras ressoam como um génesis
Desde o fundo do primeiro plano das suas plataformas
naves inter-espaciais da galáxia friki
Reclama igualdade nos seus direitos
Porque todos desejamos o mesmo - diz
Ainda que muitos homens o neguem
Será que todos nos vestimos de:
“rapaz, põe-me os ovários no céu da boca”
Ou isso gostaria se não representasse
Todos os buracos dos donuts - mas e o creme?
Quem poria o creme
Se não houvesse cabrões morenos em cuecas
Heróis da espada enxertada na sua garganta.
*
O escritor pensa compreender as suas personagens
por isso vem aqui como um espectro patético
espectro sem papel em qualquer obra
sempre o acompanha algum livro
Becker ou Kafka por exemplo
E um próprio intitulado de “Louvor de vaidades”
Pede uma cerveja sem álcool
Coloca o seu livro bem à vista
E simula ler o outro
Fingindo com afinco um rosto de erudito
A verdade é que lambe e saboreia visualmente
O cu das putas
as tetas artificiais de Paca, a travesti
o profundo decote da tonta miúda
Nunca haverá no entanto proximidade alguma
o seu status intelectual é arame farpado
que impede o seu passo de chegar às flores do lamaçal
Vai embora amanhã cedo e vai madrugar
tem previsto visitar o deputado
ou o editor ou o vereador da cultura ou…
já no seu quarto não lhe custa despir-se
tem muito ensaiado isso de baixar as calças
e antes de adormecer imagina carnes apertadas
enquanto agita com o mão
o seu pénis triste e solitario
em breve dormirá sereno e cómodo
como um grande conquistador.
*
Todas as manhãs vejo em vocês o orgulho
de se sentirem importantes e imprescindíveis
e não consigo compreender tanto esforço
se a vida não é mais do que hóstia atrás de hóstia
uma sucessão de perdas incontrolável
ante o microscópio. O ser humano
nada pode fazer salvo resignar-se
vocês apartam de mim o caminho porque fedo
a álcool e não domino a linha recta
mas sou parte de vós
e não vos calha mais que aguentar
a minha presença e as minhas palavras
mesmo que vos fodam.
Drink River tem duas margens
Aparentemente distintas
E no entanto iguais
Em ambas a luz mostra tudo sem censura
E em ambas a verdade se oculta com mentiras
Mentiras em que acreditamos cegamente
Cegos de convicções e símbolos irreais
E falamos da revolução e do progresso
Confiantes em impor as nossas ordens
E lograr a liderança
Mesmo que seja da asquerosa lixeira
Que edificamos como lugar.
Não posso entender tamanha estupidez
por que temos de ser tão importantes?
Desprende-te por fim da perversa fantasia
Que com orgulhosa humildade me mostras
E observa a luz da palavra com esses olhos
Porque olhar - apenas olhar já é o suficiente.
*
A fotógrafa é uma artista consagrada
pelo menos no mundinho cultural da cidade
vem cá com os seus flashes e o seu ar progressista
retratando marginais e perdidos
e maquilhando-os de provocação ousada
já na galeria receberá as autoridades
folgada no decote e com palavras delicadas -
que bonito! ou – que elegante! ou uma
subvenção ou compra de uma obra -
Melhor o breve discurso de apresentação
versará sobre os seus amigos esquecidos
Aqueles que tanto fode
Essa punheteira louca essa cujo objectivo
É somente o de lhes dar a maldita publicidade.
*
Barbie não é o seu nome
Mas aqui não importa isso
Estuda economia na universidade
E gosta dos caprichos caros
E de se mover como gente importante
Plena de poder e plena de dinheiro
Nunca entrou aqui e só a pude ver ao longe
E no entanto posso ler o seu desprezo
- Quem vai a saber disto no futuro
Isto é momentáneo
É como a escola -
Assim ela forja o seu carácter de empresária
E melhor inverter o seu corpo
Que endividar-se com o banco
Além disso chegam umas horas por semana
Ela vale muito e sabe-se valorizada
E amanhã ela será a chefe
E não haverá sombra que vacile
debaixo dos seus belos saltos altos.
Poemas de Francis Vaz
de "Antología de Drink River"
Tradução de Tiago Nené
O OESTE DISTANTE
Como um prospector do ouro peneiro lentamente os dias e somente de vez em quando encontro o metal precioso. Um brilho mínimo na areia que me reconcilia com o rio e, sem me conceder riquezas nem salvar da corrente, honra meus pés na água e em tanta terra removida.
*
MEIA NOITE
Mais um dia que se vai como uma cauda cortada de lagartixa que, fascinante e dolorosa, serpenteia no chão e, no seu agitamento por voltar, mais se afasta do corpo.
*
AS NUVENS
Até agora era um rumor. Algo que só acontecia aos outros. Um homem que apaga a luz e que, de imediato, tem medo do escuro. “É como na infância”, dizemos, mesmo sabendo que não é assim. E então temíamos o escuro. Hoje, além disso, a sua proximidade. Temerosos estendemos as mãos e nelas reconhecemos o trânsito: se fosse uma viagem, dir-se-ia que estamos a meio caminho. Debaixo das nuvens que pareciam distantes – como sempre, como de cada vez que o jardim se cobre de folhagem – hospedamos a esperança do vento. E a certeza de que quando forem varridas, desaparecerá o céu que ocultaram.
*
DO DIÁRIO DE UM SUPER-HERÓI
Foi o meu primeiro erro e, por fim, o único que cometi em toda a minha vida. Depois de resgatar daquele edificio em chamas aquela mulher, escapou-me das mãos e caiu sobre a multidão. Talvez esta afirmação defraude muitos dos meus seguidores, mas ainda que não tenha provocado a tragédia nem gozado com a dor alheia, no meio daquele erro, pela primeira e última vez, senti-me o homem perfeito que todos acreditavam que era.
*
SOLDADOS
Um amigo ofereceu-me um capacete inglês da segunda guerra mundial que comprou muito deteriorado e restaurou para mim. Quando alguém vem a minha casa e ao vê-lo no meu escritório me questiona, sei que espera que eu fale da guerra, que evoque trincheiras e batalhas, o horror ou as façanhas do soldado cuja cabeça ocupou o seu interior. Em vez disso, eu lhes falo do meu amigo e do seu empenho em limpá-lo com óxido, por fazer desvanecer as impurezas do tempo e aplicar com precisão a pintura. Eu o descrevo à mulher, que ali permanece cúmplice, e às suas filhas que jogam à apanhada à volta da secretária, ignorando que até o seu alvoroço é parte do fio de Ariana que liga esse capacete velho à meada da minha memória, convertendo-o num objecto diferente a que o visitante presta atenção. “E na frente de batalha? ”, todos insistem. “A quem pertenceu na guerra?”. Como se não soubessem eles que eu nunca lá estive.
*
CAVALLERS
Em plena luz do dia a calma de uma rua é um parêntesis onde mora efémero o transeunte. Por isso, enquanto volta o caos e se instala a sua confusão, ela é o sol nos terraços, o reflexo nas sacadas, a serenidade que embebe o ar como chuva imperceptível. Um castelo de naipes ao sabor do menor tremor. Alguém que sabe que hoje terá algo de belo para te contar.
*
INSTINTO
O meu animal não é diferente dos outros. Não entende causas nem razões. De leis físicas que explicam, por exemplo, o teu rebolar quando caminhas. Vê que as tuas ancas se movem e curioso gosta de ver se te afastas e te perdes feita pérola entre pedras. Agora deixa o novelo de vísceras, com o qual brincava no meu interior, e observa uma gota de chuva deslizando no vidro. Nem desconfia que há forças que o fazem seguir esse curso: ama a sua imprevisível constituição com o mesmo mistério com que a odiará. Uma noite destas pode deixar que faças com a sua pele uma bolsa. Contudo se lhe perguntares o motivo não saberia o que te rugir ou miar. Se pretende alguma coisa são os teus joelhos e o tacto dos teus dedos no seu dorso. E, como eu, lamber-te-á as feridas, ainda que não possa explicá-las.
*
NO ESCURO
Quem não fechou os olhos perante uma trágica notícia e não desejou que ao abri-los o tempo retrocedesse ao momento anterior, à última fortaleza possível. Quem não fechou os seus olhos e, destroçado pela dor, não implorou que a cena se fechasse com esse fundido e, como acontece no cinema, em segundos apenas, passassem os anos com o seu esquecimento na vida das personagens.
*
DESEJOS DE UM PEIXE
Não desejo outro aquário nem pedras novas no fundo. Quero aprender a esperar, conhecer a pausada harmonia dos gestos. Fixar os meus olhos sem pálpebras nas coisas e filtrar a luz devagarinho. Nas sombras e no rasto das imagens manchadas, ver o que há mas não vejo: a água onde melhor me movo.
*
AGOSTO
Hardy conduzia a mota. Laurel, atrás, olhava a costa. Uma gaivota rasou as suas cabeças e ambos se agacharam à vez. O gordo quando recorda aquele dia fala do perigo que espreitou. O magro do quão brancas eram as asas da gaivota. A máquina fez um par de ziguezagues e recuperou o equilibrio. Alguns ainda se perguntam como podem ser felizes juntos.
*
MARCIANOS
Apaixonam-me através do computador e vêem a sua casa pelo olho do satélite, bombardeiam galáxias virtuais à base de sistemas binários e falam por telefones sem fios com a colónia mais distante do planeta. Mas na hora da verdade, quando se desligam os processadores, deixam embevecer-se pelas mesmas coisas que os terráqueos. Uma montra iluminada com um aquário cheio de peixes, ou a pomba suja do costume que sai de uma cartola. E não podem resistir à tentação, perante a imensa visão de um lago, de lançar à água uma pedra e contar as vezes que ela salta.
*
METÁFORA DA FELICIDADE
Sempre me afigura inquietante uma piscina no inverno. Ver a minha figura na água, submersa num espesso abrigo. No fundo, enferrujado e vazio, o miradouro do socorrista. Aquele que imagino partindo no último dia de verão, desapossado do reino que do alto observava, tão asperamente humano sem o apito ao pescoço, sentindo que setembro vai inundando os seus pulmões, não lhe servindo de nada os seus dotes de salvamento.
in O Sítio Justo
Prémio Internacional Palavra Ibérica 2008
Tradução de Tiago Nené
Afinidades
Amadeu Baptista, de Amadeu Baptista
Bibliotecário de Babel, de Jose Mário Silva
Base de Dados (emails) Empresas portuguesas
Búho Branca, de Mariana Campos
Dispersa Palavra, de Victor Oliveira Mateus
HRN Advogados Algarve (Faro - Albufeira)
Logros Consentidos, de Inês Lourenço
Ortografia do Olhar, de Graça Pires
Palavra Ibérica, de Fernando Esteves Pinto
Porosidade Etérea, de Inês ramos
Poesia Distribuída na Rua, de Rui Almeida
Poesia Ilimitada, por João Luís Barreto Guimarães
Rocirda Domencock, de Ricardo Domeneck